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NOVO ARTIGO - APOSTAS DE QUOTA FIXA NO BRASIL: DA REGULAÇÃO À PROTEÇÃO DOS VULNERÁVEIS

por labsul | nov 26, 2025 | Publicações

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NOVO ARTIGO - APOSTAS DE QUOTA FIXA NO BRASIL: DA REGULAÇÃO À PROTEÇÃO DOS VULNERÁVEIS

Introdução: O Marco Legal Consolidado


O Brasil já possui um marco regulatório consolidado para as apostas de quota fixa. A partir da Lei nº 13.756/2018, que introduziu essa modalidade no sistema lotérico nacional, e especialmente com a edição da Lei nº 14.790/2023, o país estruturou um sistema amplo de autorização, fiscalização e proteção.


Este arcabouço normativo reconhece a vulnerabilidade dos consumidores — traço essencial das relações de consumo, previsto no Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) — e eleva a proteção dos apostadores a um patamar estratégico de políticas públicas.


A exploração das apostas não constitui, portanto, uma atividade livre ou irrestrita. Depende de autorização prévia, personalíssima e intransferível, concedida pelo Ministério da Fazenda, nos termos do art. 5º, II e §1º, da Lei nº 14.790/2023. Além disso, a manutenção dessa autorização está condicionada à comprovação contínua de requisitos de integridade, idoneidade e cumprimento, entre outras, de normas de prevenção à lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo (PLD/FT).

Essa exigência posiciona o Brasil em sintonia com as melhores práticas internacionais de regulação do setor, criando um ambiente em que apenas empresas comprometidas com a legalidade, a transparência e a responsabilidade social podem atuar.


  1. Obrigações e Governança: o Compromisso das Operadoras com a Integridade do Setor


As empresas autorizadas a operar apostas de quota fixa no Brasil estão sujeitas a um conjunto abrangente e rigoroso de obrigações legais. Sob a ótica da governança corporativa, a legislação impõe a adoção de políticas internas sólidas, mecanismos de controle e canais de ouvidoria eficazes (art. 8º), além do monitoramento contínuo das atividades dos apostadores desde a abertura da conta (art. 23, §3º). Essas políticas internas devem ser revisadas periodicamente, auditadas e documentadas, com registros que permitam comprovar sua efetividade perante os órgãos reguladores.

O detalhamento dessas obrigações coube à Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda, responsável pela organização, gestão e fiscalização das apostas no país. Suas portarias complementam a lei e atuam como instrumentos normativos de padronização, assegurando que a integridade das operações e o bem-estar dos apostadores permaneçam como pilares centrais do sistema regulatório brasileiro.


  1. Jogo Responsável: Pilares Regulatórios para a Proteção e a Integridade do Apostador


A Portaria SPA/MF nº 1.231/2024 estabelece princípios gerais para a implementação do jogo responsável, que incluem o dever de diligência, a promoção de educação e conscientização, a manutenção de comunicação contínua com os apostadores e a elaboração de políticas que reflitam o funcionamento real do sistema de apostas de cada empresa (art. 3°).

Mais do que princípios abstratos, a Portaria determina obrigações concretas de informação aos apostadores sobre os riscos de dependência, de transtornos patológicos e de perda de valores, associadas ao dever de orientá-los sobre sinais de alerta para que exerçam a autovigilância (art. 4°).

Os mecanismos de autocontrole são amplamente incentivados pela legislação brasileira, que obriga as empresas a disponibilizarem aos apostadores:


●       Ferramentas de limites de aposta, de depósitos, perda financeira ou de tempo vinculados a períodos diários, semanais, mensais ou outros;

●       Opções de alertas ou bloqueios de uso associados ao tempo gasto;

●       Adoção de períodos de pausa;

●       Possibilidade de autoexclusão por prazo determinado ou de forma definitiva;

●       Orientações sobre apostas responsáveis e seus riscos;

●       Questionários de autoavaliação;

●       Indicações de sintomas de dependência para autovigilância;

●       Instruções para acesso a mecanismos de prevenção de dependência e transtorno;

●       Alertas de tempo de atividade e outros.


Essas ferramentas, reconhecidas internacionalmente como práticas de excelência, representam um avanço significativo na proteção dos apostadores. Contudo, sua efetividade depende não apenas de sua disponibilidade, mas de fiscalização ativa para garantir que todas as empresas autorizadas as implementem adequadamente e que os apostadores sejam efetivamente informados sobre sua existência. Além, é claro, da fiscalização sobre as empresas não reguladas, que ao agirem de maneira ilegal descumprem quase a totalidade dos deveres impostos pelo ordenamento.


  1. Publicidade Responsável: um Pilar Essencial na Proteção do Apostador


A regulação brasileira também estabelece diretrizes específicas para a publicidade de apostas. A Portaria SPA/MF nº 1.231/2024 determina que os agentes operadores devem, entre outras obrigações: (i) abster-se de divulgar modalidades não autorizadas; (ii) utilizar linguagem clara, transparente e socialmente responsável, com atenção especial à proteção de menores de 18 anos e de outros grupos vulneráveis; (iii) respeitar pedidos de exclusão de destinatários de campanhas, inclusive abstendo-se de enviarem materiais publicitários; e (iv) evitar qualquer comunicação que apresente as apostas como promessa de êxito pessoal, social ou econômico.


A autorregulação tem se mostrado um complemento eficaz à regulação estatal. O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR), por meio do Anexo X do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, fixa parâmetros adicionais para a comunicação de apostas, incluindo a proibição de direcionamento de anúncios a crianças e adolescentes, a exigência de mensagens de advertência sobre os riscos do jogo, e a proibição de sugerir que as apostas são isentas de risco ou que o apostador pode exercer controle absoluto sobre os resultados.


A convergência entre regulação estatal e autorregulação publicitária busca exatamente isso: permitir a exploração econômica legítima do setor sem relativizar a proteção do consumidor — sobretudo daqueles em situação de hipervulnerabilidade. Trata-se de um modelo que combina liberdade de mercado com responsabilidade social, reforçando o dever das empresas de comunicar de forma ética, proporcional e alinhada ao interesse público.


  1. A Proteção de Grupos vulneráveis: uma Prioridade Legal e Ética


4.1 Crianças e Adolescentes: Barreiras Múltiplas de Proteção


A vulnerabilidade de crianças e adolescentes possui previsão no art. 227 da Constituição Federal, que impõe o dever de cuidado à família, à sociedade e ao Estado, e no Estatuto da Criança e do Adolescente, que reforça essa disposição constitucional. A Declaração dos Direitos da Criança reconhece a necessidade de garantir proteção e cuidados especiais em razão da imaturidade física e mental.


A Lei nº 14.790/2023 proíbe expressamente a participação de menores de dezoito anos em apostas de quota fixa. A fiscalização dessa proibição é exercida por uma equipe técnica especializada vinculada à Secretaria Nacional de Apostas Esportivas e de Desenvolvimento Econômico do Esporte.


As empresas legalizadas necessitam de implementar diversos mecanismos de proteção. A verificação de idade no momento da abertura da conta é obrigatória, com isso impedindo o cadastro de menores. É ainda obrigatório, para as empresas autorizadas no Brasil, o reconhecimento facial para impedir cadastros fraudulentos, além de impedir que crianças e adolescentes acessem as plataformas autorizadas. Tais mecanismos de verificação e monitoramento devem observar estritamente a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), com bases legais claras, armazenamento seguro, minimização de dados e possibilidade de revisão humana em decisões automatizadas


Além das checagens técnicas, algumas operadoras recomendam o uso de softwares de controle parental, como o Net Nanny ou o GamBlock, para clientes que compartilham dispositivos com menores. Casos de suspeita são escalados para equipes de compliance para investigação e decisão sobre bloqueio.


A Associação Nacional de Jogos e Loterias (ANJL) promoveu a campanha "aposta não é coisa de criança" para conscientização sobre o uso de plataformas por menores. A maioria das empresas autorizadas adota como medida padrão a suspensão e/ou encerramento imediato da conta em caso de detecção de uso por menores, com anulação de apostas, reembolso de depósitos e bloqueio permanente.


4.2 Outras Vulnerabilidades: Baixa Renda e Comportamentos de Risco


A proteção das pessoas em situação de vulnerabilidade vai além da questão etária. As empresas que exploram apostas de quota fixa no Brasil têm o dever legal de adotar medidas específicas de proteção voltadas a indivíduos de baixa renda, em vulnerabilidade socioeconômica, ou com histórico de jogo problemático.


A Portaria SPA/MF nº 1.231/2024 estabelece regras claras sobre o jogo responsável, determinando que as operadoras ofereçam mecanismos de controle como limites de depósito, de perda, de tempo de sessão e de autoexclusão — tanto temporária quanto permanente. Essas ferramentas buscam prevenir o desenvolvimento de comportamentos de risco e promover o uso consciente das plataformas.


Além disso, as empresas têm a obrigação de monitorar e intervir preventivamente no comportamento dos usuários, identificando padrões que indiquem jogo problemático. Entre as medidas estão o contato com o usuário e a disponibilização de questionários de autoavaliação, com perguntas como "você participa de jogos de azar até perder o último dinheiro que tem?", "você já vendeu algo para financiar o jogo?" ou "você tem necessidade de participar de jogos de azar devido a brigas, decepções ou frustrações?".


A Portaria determina ainda a obrigação de impedir o cadastro ou uso das apostas por pessoa diagnosticada com transtornos do jogo patológico e pessoas impedidas de apostar por decisão administrativa ou judicial. Algumas empresas disponibilizam linhas de apoio para pessoas com problemas de jogo, como o Gamblers Anonymous, que oferece reuniões online para jogadores compulsivos.


Entretanto, ainda há um longo caminho a percorrer. É essencial que todas as empresas legalizadas atuem com maior transparência e intensidade na promoção de práticas de jogo responsável. Da mesma forma, a fiscalização estatal e setorial precisa ser mais constante e eficaz, garantindo a aplicação das sanções previstas para operadoras que descumpram seus deveres legais. Mais do que um requisito normativo, trata-se de uma responsabilidade social inadiável: proteger os vulneráveis é condição indispensável para consolidar um mercado de apostas ético, seguro e verdadeiramente responsável.


  1. O Combate ao Mercado Ilegal: Prioridade Estratégica


Embora o arcabouço normativo brasileiro seja robusto, sua efetividade encontra um obstáculo significativo: o mercado ilegal de apostas. A Secretaria de Prêmios e Apostas tem atuado de forma ativa no combate a esse mercado, combinando normas técnicas e ações administrativas, contudo dezenas, se não centenas, de casas atuam na ilegalidade.


Em outubro de 2024, a Secretaria encaminhou pedidos de bloqueio de milhares de domínios irregulares. Desde então, as principais estratégias incluem: publicação de lista de empresas autorizadas a ofertar apostas no país; pedido de bloqueio de domínios junto à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel); e portarias que disciplinam obrigações de instituições financeiras e de pagamento.


A pesquisa "Fora do Radar: Dimensionamento e Impactos Socioeconômicos do Mercado Ilegal de Apostas no Brasil" estimou que cerca de 51% do setor de apostas brasileiro opera na ilegalidade, gerando um impacto fiscal de até R$ 10,8 bilhões ao ano.


O combate ao mercado ilegal é essencial não apenas por razões fiscais, mas principalmente porque somente empresas autorizadas estão submetidas às obrigações de proteção dos apostadores. Operadores ilegais não implementam mecanismos de autocontrole, não verificam idade, não monitoram padrões de jogo problemático e não oferecem canais de apoio. Frequentemente hospedam serviços fora da jurisdição nacional, utilizam alta rotatividade de domínios e técnicas de ofuscação para evitar bloqueios. Além disso, buscam meios de pagamento que dificultam o rastreamento, como instituições que não precisam de autorização do Banco Central.


  1. Desafios e Necessidades de Aperfeiçoamento


Apesar do marco regulatório já consolidado e das múltiplas obrigações impostas às empresas autorizadas, o sistema brasileiro de apostas de quota fixa ainda enfrenta desafios relevantes que exigem atenção contínua e aprimoramento constante.


Esses desafios não decorrem apenas de lacunas normativas, mas sobretudo da necessidade de assegurar a efetiva implementação das regras existentes e da concreta fiscalização contra o mercado ilegal. A eficácia do modelo regulatório depende de fiscalização rigorosa, cooperação entre órgãos públicos e comprometimento das empresas com práticas de conformidade e jogo responsável.


Mais do que um conjunto de normas, a regulação brasileira precisa consolidar-se como um sistema dinâmico de governança, capaz de responder às transformações tecnológicas e comportamentais do setor. Garantir que o marco legal funcione plenamente na prática — protegendo o consumidor, coibindo a ilegalidade e promovendo a integridade do mercado — é o verdadeiro teste da maturidade regulatória do país.


  1. Fiscalização e Implementação Efetiva


A existência de normas abrangentes não assegura, por si só, sua efetividade. É indispensável que haja uma fiscalização contínua, rigorosa e tecnicamente qualificada, capaz de verificar se todas as empresas autorizadas cumprem integralmente os deveres de proteção aos grupos vulneráveis previstos pela Secretaria de Prêmios e Apostas e demais órgãos governamentais.


A implementação de políticas preventivas desempenha papel central na proteção de vulneráveis, sobretudo diante das estratégias digitais sofisticadas de captação e fidelização de apostadores. Acordos técnicos, como aquele formado entre a Secretaria de Prêmios e Apostas e a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), reforçam medidas de prevenção, mas precisam ser acompanhados de ações concretas de verificação.


Conclusão: Um Marco Sólido que Exige Vigilância Permanente


O Brasil estruturou um marco regulatório consistente para as apostas de quota fixa, sustentado por leis abrangentes, portarias detalhadas e obrigações precisas impostas às empresas autorizadas. Esse arcabouço normativo reconhece a vulnerabilidade do consumidor e estabelece instrumentos robustos de proteção — que vão desde mecanismos de autocontrole até campanhas permanentes de conscientização.


As empresas autorizadas já oferecem ferramentas reconhecidas internacionalmente e demonstram compromisso com práticas responsáveis. A diferença fundamental entre o mercado legal e o ilegal reside precisamente nisso: apenas operadores autorizados estão submetidos a esse conjunto de obrigações e apenas eles implementam medidas efetivas de proteção aos apostadores.


Por isso, o combate ao mercado ilegal emerge como uma das principais metas a serem atingidas. Não se trata apenas de questão fiscal, mas de saúde pública e proteção social. Cada apostador direcionado ao mercado ilegal é um cidadão desprotegido, exposto a práticas predatórias sem qualquer salvaguarda.


Ao mesmo tempo, é indispensável garantir fiscalização contínua e rigorosa sobre as empresas legalizadas, assegurando o cumprimento integral de suas obrigações. A existência de normas é condição necessária, mas não suficiente. Políticas preventivas precisam ser aplicadas de forma efetiva, mecanismos de verificação devem ser aperfeiçoados e a cooperação entre Estado, empresas e sociedade civil precisa se tornar permanente.


O caminho está traçado: o marco legal foi consolidado, as ferramentas estão disponíveis e o compromisso social está delineado. O desafio, agora, é fazer com que esse sistema funcione plenamente na prática — protegendo de maneira efetiva os apostadores, especialmente os mais vulneráveis, e consolidando um mercado legal, transparente e socialmente responsável, capaz de unir desenvolvimento econômico e proteção de direitos.




*Sobre a autora

Letícia Saraiva Ferraz

Pós Graduada em Direito Público

Diretora e Pesquisadora do LabSul

Advogada e Consultora

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Comments

Marcela

April 30, 2024

Exceptional

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